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 Altar Cénico da Nossa Senhora das Dores

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       Construído como um autêntico palco cénico, o retábulo ganha dinamismo e destaque ao ser pensado para albergar num «casamento» «harmonioso» figuras preexistentes, com diferentes tamanhos, diferentes datações, variados materiais e proveniências distintas, articulando-as numa peça global que rompe com a tendência «da escultura feita para o retábulo» em favor «do retábulo construído e idealizado para o grupo escultórico».

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          Destacando-se pelo trato, pelo talhar, pelo material e até pelas suas feições, a Nossa Senhora das Dores apresenta-se como a peça mais antiga do conjunto, seguida de imediato pelo cristo crucificado que encima todo o conjunto cénico.

        De olhar voltado para o alto, desesperado e lacrimejante, com as mãos juntas em jeito de oração, a Virgem, coberta de trajes dourados e azuis, destaca-se em volumetria e detalhe das demais figuras. Sem certezas, uma vez mais, da sua autoria, proveniência e datação, por aproximação estética, esta Nossa Senhora parece inserir-se no panorama do barroco da região e estabelece ligações de proximidade com a Santa Teresa, produzida no convento de Jesus em Aveiro e hoje exposta no Museu do convento, mais conhecido como museu de Santa Joana. Em ocasião de festividades, e assim como a figura de Santa Teresa, esta virgem ganha adereços em prata – uma coroa e sete espadas – que nos permitem defini-la com certeza como Nossa senhora das Dores. Cada uma das espadas representa simbolicamente as sete dores da Virgem.

          A primeira espada representa a profecia de Simeão sobre Jesus. Reconhecendo Simeão como um bom homem o Espírito Santo prometeu-lhe que "não havia de morrer sem ver o Cristo do Senhor", assim sendo quando Maria e José foram ao Templo de Jerusalém cumprir a Lei judaica da consagração do filho primogénito, 40 dias depois do nascimento do menino, Simeão, presente no templo, tomou o Menino nos seus braços e recitou-lhe um cântico que profetizava a redenção do Mundo por Jesus:

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"Agora tu, Senhor, despedes em paz o teu servo Segundo a tua palavra; Porque os meus olhos já viram a tua salvação, a qual preparaste ante a face de todos os povos: Luz para revelação aos gentios, E glória do teu povo de Israel.» (Lucas 2:29-32)

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         A segunda espada simboliza a fuga da Sagrada Família para o Egito. Esta espada e consecutiva dor remete para o momento em que José e Maria têm fugir com o menino Jesus para o Egipto, após o Rei Herodes mandar matar, por ciúme e vaidade, todos os recém-nascidos, tentando eliminar aquele que os reis magos procuravam como sendo o “Rei dos Judeus”.

     A terceira espada evoca o desaparecimento de Jesus durante três dias.  Este celebre acontecimento da vida de Jesus remonta para momento em que Jesus, com os seus tenros doze anos de idade, se afasta dos seus pais em Jerusalém, por altura da comemoração da Páscoa Judaica.  Maria e José, ao reconhecerem a ausência de Jesus, retomaram ao templo, onde ao fim de 3 dias, o encontraram em agitado diálogo com os anciãos. Nesta passagem, assustada com o facto de durante 3 dias se ter mantido sem notícias do filho, Maria repreendeu o filho e sem entender a repreensão Jesus interrogou-a:

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«Por que me procuráveis? Não sabíeis que eu devia estar na casa de meu Pai?» (Lucas 2:49).

 

 

        A quarta espada, por sua vez, remete para o encontro de Maria e Jesus a caminho do Calvário descrito por Lucas. Nesta dor, a virgem encontra-se com o filho quando este percorre o caminho para sua crucificação, carregando a pesada cruz ao ombro.

      A quinta espada faz referência ao momento em que Maria assiste ao sofrimento e morte de Jesus na Cruz.

       A sexta espada articula-se com o conhecido momento da Lamentação. Neste momento, segundo Mateus, Maria recebe nos braços o corpo do filho tirado da Cruz.

       A sétima e última espada, representa a última dor de Maria, quando esta observa o corpo do filho a ser depositado no Santo Sepulcro. Este momento, normalmente conhecido na historiografia artística como o momento da deposição, marca a deposição de Jesus no túmulo.  Associado a este momento surgem dois nomes que se tornam relevantes para as dores da virgem e para o retábulo em questão, José de Arimateia e Nicodemos, dois fariseus ricos que ajudaram a colocar Jesus no túmulo.

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     No retábulo cénico da Capela da Nossa Senhora das Dores, a Virgem apresenta-se assim no primeiro plano, ao centro, fazendo-se rodear por duas figuras do sexo masculino, que exibem uma expressão de desolação, enquanto colocam a mão sobre o peito que podemos identificar como sendo José Arimateia e Nicodemos. Estas figuras masculinas afastam-se em trato da Virgem, mas articulam-na em temática com as restantes peças do retábulo, transformando o retábulo num enorme palco, onde se representam vários momentos do caminho de Cristo no calvário.

     

     José Arimateia, homem rico de Arimateia e membro ilustre do sinédrio, é um nome bastante mencionado nos quatro evangelhos e tem um papel de destaque na paixão e morte de Cristo. José tinha um sepulcro novo cavado na rocha, perto do Gólgota, em Jerusalém, era discípulo de Jesus, e ainda que se mantivesse em segredo por medo das autoridades judaicas, nos momentos cruéis da crucifixão ele não temeu pedir a Pilatos o corpo de Jesus para que o pudesse sepultar.  Foi igualmente José de Arimateia, que após a autorização de Pilatos para levar o corpo de Cristo, o despregou da cruz, o envolveu num lençol limpo e, com a ajuda de Nicodemos, o depositou no sepulcro que lhe pertencia e que ainda ninguém tinha utilizado. No retábulo José de Arimateia encontra-se representado ao lado esquerdo da Virgem com vestes azuis.

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       Nicodemos, assim como José de Arimateia, era um fariseu rico, membro do Sinédrio, que segundo o Evangelho de João, era um seguidor de Cristo. No evangelho de João, Nicodemos aparece referenciado em três momentos, o primeiro, quando este visita Jesus numa noite para ouvir seus ensinamentos, o segundo quando afirma a lei relativa à detenção de Jesus durante a Festa dos Tabernáculos, e o terceiro quando ajuda José de Arimateia na deposição de Cristo. No retábulo, Nicodemos aparece representado ao lado direito da virgem com vestes castanhas.

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           Estas duas esculturas, diferentemente da Virgem, encontram similaridade estética e formal com outras esculturas do retábulo que parecem fazer parte de um conjunto. No início conjeturamos que as 14 esculturas tivessem sido encomendadas para concluir este retábulo cénico, já que as figuras remetem para o caminho do Calvário de Cristo e para momentos específicos das dores da virgem, no entanto uma menção do SIPA a Raul Proença  e à descrição que este faz da quinta no seu livro “Guias de Portugal”, alerta para a possibilidade destas esculturas serem provenientes das guaritas que existiam ao longo do espaço de cultivo da quinta,

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“estas guaritas albergaram grupos escultóricos representativos dos Passos da Paixão de Cristo que, segundo Proença. Raúl em "Guia de Portugal" as figuras eram em barro policromado, em tamanho quase natural, e "embora não atingissem o plano de obras de arte, eram modeladas em atitudes vivas, análogas às do apostolado de Udarte outrora existentes no refeitório do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra";”[1]

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      A possibilidade das esculturas mencionadas por Raul Proença serem as mesmas que se encontram hoje em dia no Retábulo da Capela acaba por se tornar na tese investigativa mais coesa que temos entre mãos, e ainda que existam elementos que não consideremos muito concordantes, como a aproximação estética à última ceia de Udart ou o facto  das figuras serem em gesso e não em barro como o descrito, não nos parece relevante desconsiderar esta linha interpretativa já que no espólio da quinta não existe memória, desde do século XX, da existência de outro grupo escultórico se não o do altar.

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           No primeiro plano, no lado direito do retábulo, quase que numa cena isolada, podemos ver a figura de Cristo momentos antes de ser preso, em jeito de oração e de questionamento, ajoelhado de olhar voltado para o céu, sendo a única imagem que aparece sozinha.  Este momento retrata o episódio de Cristo no Horto de Getsemani, quando este agoniza e pede a Deus “Pai, afasta de mim esse cálice”. É frequentemente representado com alguns dos Apóstolos adormecidos, figuras que vemos com mais dificuldades entre o primeiro plano e o segundo. Na realidade o grupo escultórico que remete para os apóstolos adormecidos no Horto, é quase impercetível num primeiro olhar, e representa São Pedro e São João Evangelista.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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        Do lado esquerdo, ainda no primeiro plano, em oposição, vemos a conhecida imagem do Senhor dos Passos, ladeada por um soldado e um carrasco. A figura do Senhor dos Passos é facilmente identificável, já que nela Cristo enverga uma túnica roxa, de panejamento real e dotado de uma peruca, também ela real, sob a coroa de espinhos, e segura a cruz aos ombros invocando o caminho percorrido por ele desde a sua condenação até à sua Crucificação no Calvário. Este culto é praticado em Portugal desde 1586, e é normalmente alvo de procissões

        A ladear o Senhor, encontram-se duas figuras masculinas. Uma das figuras, pelo traje que enverga, de notória qualidade e minúcia no tratamento e aplicação de padrões, quer nos tecidos, quer na armadura, e pelo elmo que carrega trata-se de um soldado, com estatuto diferente do carrasco que se situa no lado oposto de Cristo, que possui vestes mais simples e menos cuidadas, despidas de padrões

        Num segundo plano aparecem, em lados opostos, dois momentos da tortura de Cristo. São momentos muito semelhantes, ambos com três figuras, Cristo e dois carrascos, sendo que do lado esquerdo, não são propriamente dois carrascos de estatuto semelhante, mas sim, como no primeiro plano, um soldado, com estatuto superior e vestuário melhor cuidado, e alguém de estatuto inferior.  

No grupo escultórico da esquerda representa-se o momento do escarnecimento de Cristo, quando os soldados o insultam e agridem, colocam-lhe a coroa de espinhos, o manto púrpura e, segundo algumas versões, uma cana verde nas mãos, a servir de cetro numa caracterização jocosa do “Rei dos Judeus”. Já no grupo da direita, representa-se o momento da Flagelação de Cristo, equivalente ao tipo iconográfico de Cristo na Coluna. Em nenhum momento as figuras se repetem ou exibem expressões idênticas. Momentos cénicos diferentes exigem figuras distintas.

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          No último plano, já encostado à parede, que alberga uma enorme tela a simular o cenário do monte da Gólgota, encontra-se Cristo Crucificado, ladeado pela Virgem Maria e por S. João Evangelista.

           À direita, S. João é representado envolto num manto vermelho e vestes verdes, adornadas de um padrão ténue, olhando diretamente para Cristo no alto da Cruz. À esquerda, Maria age da mesma maneira olhando para o Filho, morto na Cruz, com uma expressão de desespero. Maria aparece como habitualmente com vestes claras e um manto azul.

        Estendendo-se até à linha do horizonte num cenário quase árido, a paisagem pintada em tons pastel, na parede de fundo, apresenta-se como uma continuação cénica do monte da Gólgota povoada por varias figuras humanas que observam a Crucificação de Cristo.

         Toda esta encenação escultórica pousa delicadamente sobre uma base de cortiça socalcada, que cria no retábulo uma proximidade visual com um monte e as suas saliências e reentrâncias, e é enquadrado, como já mencionei por uma Tela de grandes dimensões, que retrata o cenário de continuidade do monte, exibindo rios, montanhas, e pessoas que se vão perdendo no olhar do crente como se se aproximassem da linha do horizonte.

        Ainda no altar mas pertencendo a outras linhas estéticas, e com datações diferentes estão dois pequenos santos, um no extremo direito e outro no extremo esquerdo, e um pequeno nicho envidraçado que retrata a crucificação de Cristo. Este pequeno nicho, ao contrário dos restantes elementos, parece ter sido encomendado aquando da construção do Altar, e assim como uma cortina num palco de teatro, este pequeno apontamento fecha o diálogo que se estabeleceu entre as personagens distintas do retábulo, articulando de forma harmoniosa as peças que constroem a narrativa do caminho do calvário de Cristo e consequentemente das dores da Virgem.

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[1] CAMARA, TERESA –  Quinta da Senhora das Dores / Quinta de Verdemilho. SIPA. 2006. Site -http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=10346

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